A vida espiritual, muitas vezes, parece um caminho tortuoso e não muito claro. Se considerarmos os ambientes em que podemos ouvir a respeito dessa temática, a conjuntura torna-se ainda mais tensionada. Alguns dizem que a espiritualidade deve ser um caminho de orientação do seu sentido existencial; outros indicam uma espécie de refúgio aos sofrimentos e angústias vividas no cotidiano.
Diante desse cenário, resta a pergunta: onde nos posicionaremos em todo esse emaranhado de propostas de vida sem que caiamos em um espiritualismo grosseiro, de completa aversão à matéria e de repúdio à ordem da criação, nem, por outro lado, nos debruçarmos sobre uma mentalidade panteísta, de uma visão light e irresponsável a respeito da religião?
1. O Primeiro Passo no Caminho Espiritual
Longe de querer solucionar essa pergunta, supõe-se que o primeiro passo a ser dado é o de como começar a traçar esse caminho. Nesse sentido, a proposta é dar concretude ao anseio de enraizar a determinação por uma vida no espírito, mas não esquecendo das realidades que nos perpassam, sobretudo nesses tempos.
Inicialmente, é necessário compreender que não estamos sozinhos nessa jornada e que há uma Pessoa, ou melhor, três Pessoas que procuram nos auxiliar. Assim, antes de nós concebermos esse desafio, quando ainda a nossa razão era insuficiente para entender o que de fato se passava naquela recém-nascida vida, fomos apresentados à família celeste. Sim, falo do Batismo a que somos submetidos por entrega de nossos pais à Santíssima Trindade, a marcação indelével, no nosso ser, de que nos tornamos membros da Igreja.
Ora, graças a esse momento, nos é possível perceber que Deus vem a nosso encontro e, a partir dali, planta uma semente em nosso coração. Essa semente, por analogia aos elementos da natureza, precisa ser cultivada, cuidada e muito bem alimentada, para que jamais nos esqueçamos quem foi Aquele que nos permitiu vir ao mundo e que, ao mesmo tempo, vela por nós a todo instante. Por conta disso, é que nessa mesma semente infundida estão contidas as famigeradas virtudes teologais.
2. Conceituando a Virtude e a Perspectiva Teologal
Todavia, o que vem a ser virtude? Para que empenhemos um trilhar bem definido, é importante que a vejamos como uma “disposição habitual e firme para fazer o bem” (CIC, 1803). Por se tratar de uma disposição, demonstra-se a necessidade de os homens darem uma resposta ao anseio do Pai Celeste de que nós participemos da natureza divina. Nesse ponto se introduz a perspectiva teologal, ou seja, em Deus nasce o Amor que se infunde em nós e para Ele deve retornar essa graça que recebemos como um chamado a ser filho e a buscar a vida eterna.
3. Os Desdobramentos das Virtudes Teologais
E quais são os desdobramentos das virtudes teologais?
3.1. Fé
Primeiramente, podemos falar da fé. Veja bem, é perceptível que vivemos em um mundo bastante calcado na necessidade de apresentação das evidências e do empirismo como forma de validar nossa certeza a respeito das coisas. Porém, simultânea e inconscientemente, fazemos adesões e consentimentos, muitas vezes, irrefletidos sobre determinadas situações de nossas vidas que se passam desapercebidas.
Por exemplo: em momentos normais de temperatura e pressão, íamos com nossos familiares e amigos aos restaurantes para confraternizar. Ocorre que, ao fazer o pedido de um prato que gostamos muito, temos a confiança de que o cozinheiro fará aquilo que foi pedido e que o garçom cumprirá com essa ordem. Ora, não há outro elemento, da nossa parte, que não seja a própria confiança que depositamos no labor desempenhado por esses dois profissionais que nos garante que eles cumprirão com zelo o seu ofício.
Trazendo para a realidade espiritual, a adesão aos desígnios divinos funciona de maneira análoga: a fé não se trata de uma credulidade impensada, mas de uma confiança de que Deus fará algo a nós porque assim garantiu. Daí nos apresenta o exercício de nos esforçarmos e acreditarmos que o Senhor, como um bom Pai, nos dará o melhor.
3.2. Esperança
Ademais, somos seres que possuem uma realidade terrena, já que compostos de matéria, razão pela qual estamos circunscritos à dinâmica do espaço e do tempo. Em razão disso, sobretudo pelo fato de vivermos em uma sociedade altamente complexa e dinamizada, o tempo muitas vezes se torna um grande fetiche moderno, o qual muito prezamos.
Basta que peguemos um sinal vermelho ou que algum amigo não honre o compromisso e chegue atrasado para que sintamos um vazio de que subaproveitamos o nosso momento. Nesse cenário, ampliar a esperança é ainda mais relevante, pois ela nos desloca dessa centralização das coisas nos momentos em que “nós queremos, nós precisamos” para que possamos viver uma expectativa saudável dos acontecimentos.
Se no âmbito humano poderíamos, por exemplo, cuidar bem das situações que apresentei, como ouvir um podcast no carro ou até mesmo carregar um bom livrinho e lê-lo enquanto o amigo não chega, o abandono à Providência Divina se torna o grande cerne dessa virtude, uma vez que permite repousar o nosso desejo de felicidade pelo Reino dos Céus amparado pela graça do Espírito Santo. Dessa maneira, que possamos cuidar das realidades terrenas com a certeza de que obteremos o céu, porque assim Deus quer, mas que não esqueçamos de cumprir com nossa parte, pois é aí em que mora o perigo da perdição do homem.
3.3. Caridade
Por fim e certamente a mais importante, a caridade. Santo Agostinho, grande doutor da Igreja, já aduzia que “Só se ama aquilo que se conhece” e creio que há uma fundamental sabedoria nessa passagem. O conhecer, nessa linha, pode ser apresentado como uma forma de “ter e constituir relações”. Dito de outra maneira, adaptando a expressão agostiniana: “Só se ama aquilo com o qual se tem relações”.
Ora, se uma pessoa é um ser que busca estabelecer relações, então daí se deriva o fato de que Deus, que é uma pessoa, está à procura de estabelecer relações com o homem, que também é uma pessoa.
Contudo, se Deus, que na Santíssima Trindade estabelece uma relação perfeita entre as figuras do Pai, do Filho e do Espírito Santo, já nos ama desde a nossa origem e Ele é a própria Verdade, então cabe ao homem dar essa resposta de amor quando passa a se relacionar, ou melhor, conhecer a Deus.
E de que maneira podemos representar concretamente isso senão no próprio seio familiar, com aqueles a quem somos mais próximos e com os quais mais nos relacionamos, sobretudo, atualmente?
Vale lembrar os importantes mandamentos divinos:
“Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu espírito” Dt 6, 5
“Amarás teu próximo como a ti mesmo” Lv 19,18
Enfim, não sei se antes dessa quarentena a relação familiar era das melhores dentro do contexto domiciliar, mas se agora estamos dispostos nos mesmos ambientes, que tal cultivar essa virtude, sabendo que já existe alguém que deu esse primeiro passo por nós?
Por:Gustavo Vilarinho de Araújo – Advogado, Membro da Comissão de Bioética da Arquidiocese de Brasília e dos Promotores da Vida (Adaptado para o site da paróquia.)